“Trabalhar menos, trabalhar melhor
O imenso desafio que hoje se coloca a uma sociedade, face a tal objetivo – a constituição de quadros sociais novos, capazes de assegurarem sociedades mais fraternas, de cidadãos com mais qualidade de vida e maiores níveis de felicidade – é o da reorganização da produção, de acordo com objetivos estratégicos. E essa reorganização pressupõe duas escolhas, necessariamente alternativas. Trata-se de uma opção entre dois modelos de desenvolvimento: um assente em mão-de-obra intensiva e emprego; outro na aposta em inovação e novas tecnologias, caso em que os investimentos se orientam sobretudo para a automação e para nichos de mão-de-obra altamente diferenciada.
A primeira escolha, mais sedutora sob o ponto de vista conjuntural, condena o tecido produtivo à competição com modelos mais atrasados; a segunda aponta claramente para um novo paradigma produtivo com baixos níveis de empregabilidade, é certo, mas com elevados níveis de diferenciação da mão-de-obra, aproximando estruturalmente o tecido produtivo dos níveis praticados em sociedades mais desenvolvidas. Se a primeira das opções nos orienta para um modelo conhecido, já a segunda exige uma alteração profunda de referências na organização do trabalho, enquanto fator socialmente estruturante e implica uma forte aposta na mudança de paradigma de educação, de formação e de qualificação dos cidadãos. Uma educação que, necessariamente, prepare para um período de transição, assente em novos valores, em que a cidadania ativa, participada e responsável, assume um peso específico. Uma formação orientada para um mercado de trabalho cada vez mais exigente, em função de uma oferta, por um lado, progressivamente mais reduzida, por via de tecnologias de ponta que reduzem a participação humana nos processos produtivos e, por outro, a alargar-se a novas áreas de atividades muito próximas do triângulo de serviços que suportam o emergente setor social – cuidar de si, cuidar do próximo e interagir harmoniosamente com o meio ambiente. Uma qualificação para a vida e para a aprendizagem do lazer e a fruição dos tempos livres, incluindo participação em projetos de intervenção comunitária, com elevados níveis de utilidade social que respondem a novas e emergentes necessidades da comunidade.
Tudo em função de uma nova realidade, em que o tradicional mercado de trabalho sofre uma profunda mutação.
Espera-se cada vez menos intervenção humana. Da agricultura à indústria, da automação industrial ao setor terciário de serviços, da expansão da tecnologia digital, aplicada à telemática e apoiada num cortejo de desintermediação, todos os sinais apontam para o progressivo esgotamento das ofertas que tenderão a restringir-se ao trabalho intelectual criativo e inventivo e às prestações que, pela sua natureza específica, envolvem relações humanas de proximidade.
Há alguns dias, ouvi alguém, em exercício de funções de responsabilidade, dizer que era necessário investir em projetos inovadores, de mão-de-obra intensiva e longe de uma política de baixos salários.
Dei comigo a pensar em como este seria uma espécie de caminho único num universo ideal, mas impossível de concretizar no tempo global que vivemos. Importa, pois, optar e esse é o maior dos desafios que procuro refletir.”
Texto, parte (2), editado na Revista HUMANIDADES 9, DEZ2003
Este é hoje, como já se previa há mais de dez anos, um enorme desafio, sobretudo num quadro de globalização, em que a competitividade não dá mostras de afrouxar, mas em que as assimetrias se acentuam com situações limite e extremadas.
Criada a máquina da felicidade para alguns, o robot para outros, importa avaliar se as tecnologias libertarão o homem do trabalho ou se, ao contrário, o robotizarão à imagem da criatura por si criada, tornando-o energia escravizada numa sociedade do trabalho.
Parece assim estar a acontecer, em nome do paradigma competitivo.
A questão emergente é saber-se que uso os humanos farão dos resultados do seu génio criativo?
O recurso à tecnologia, exige cada vez menos mão-de-obra para a realização do trabalho produtivo. E só a ambição do lucro máximo estará a determinar a segunda das escolhas, assente na competitividade.
É portanto possível, ousar imaginar – como Agostinho da Silva diz na Entrevista a Antónia de Sousa, O Império Acabou. E Agora? – “… que um dia vai chegar a ter no mundo toda a produção que for necessária sem a obrigatoriedade do trabalho humano…”
Agostinho da Silva, de quem andei tão perto ali pela Travessa de Abarracamento de Peniche, onde tinha a sua residência, mesmo em frente à sede da Comissão Nacional para a Humanização e Qualidade dos Serviços de Saúde a que presidi, é para mim uma fonte de inesgotável inspiração, pela clareza do pensamento, pela ousadia das propostas, pela liberdade que exibe, mas também pela coerência de vida que assumiu.
Antónia de Sousa testemunha ser ele “um dos raros homens que transportam em si a semente do futuro”.
Estou, pois, a beber muito boa água na fonte que me inspira e a que recorro com frequência.
Mas não nos equivoquemos. A ambição humana, continua a ser o maior obstáculo a que o homem usufrua plenamente dos potenciais benefícios do seu génio.
A profunda reorganização da produção global deve então assentar num novo paradigma, a coopetição, que dê lugar a sistemas de economia mais afáveis com as necessidades dos indivíduos e das suas comunidades, baseado em referências de convivência, cooperação e solidariedade.
O estabelecimento de equilíbrios que prossiga o objetivo de assegurar, entre a coopetição e a sustentabilidade, a dignidade humana a um cada vez maior número de indivíduos, independentemente, das nações ou dos regimes.
Por via desta reorganização da produção, sob o signo da cooperação e da solidariedade, será viável a progressiva absorção de excedentes de mão-de-obra indiferenciada em regiões mais deprimidas, que assegure aos indivíduos e às famílias sustentabilidade e às economias dinâmica de desenvolvimento.
O valor do cuidar – cuidar de si, cuidar do outro e cuidar do ambiente – integrado num sector social conceptualmente renovado, será plataforma de eleição para a valorização da dignidade humana.
Trabalhar menos será inevitável. Trabalhar melhor, uma meta a alcançar, através da ferramenta da qualificação continua e voluntária de cada individuo, responsável por uma contribuição para a comunidade.
José Luís Gil
Poderá encontrar aqui a 1ª parte deste artigo:
“Por uma Ecologia dos Modelos de Intervenção Social (1)
Os Dinossauros e as Borboletas”